O mapa apresenta-se como um instrumento narrativo de uma dada realidade espacial. Entretanto, a complexidade infinita do real – o mistério da realidade – extrapola todas as possibilidades narrativas. Assim sendo, das múltiplas lentes ou perspectivas existentes – todas elas voltadas para a análise e o entendimento do real – a Cartografia e os seus mapas manifestam-se apenas como um ponto de vista, ou seja, uma forma singular de expressão cujo objetivo primordial concentra-se na promessa de tornar inteligível, através de representações gráficas, as espacialidades de um segmento do mundo concreto. Desse modo, devemos enfatizar que somente (e justamente) no cruzamento entre as várias imaginações ou vieses narrativos – do qual o mapa é somente um prisma simplificado – é que se revela o perfil da realidade investigada.
A inclinação da vontade humana no que se refere à elaboração de modelos ambientais – como capacidade de se tentar perceber imaginativamente a realidade – não é algo novo. As primeiras representações concretas do ambiente, projetadas nas superfícies das cavernas europeias, através de pintura ou arte rupestre, datam de algo em torno dos 50.000 anos e tinham como intuito registrar a percepção do espaço circundante para além da imprecisa memória (ou para além dos nossos imprecisos e voláteis mapas mentais). Tal noção embrionária de projeção permanece viva através da história da Cartografia, transformando-se em atributo irrefutável nas representações terrestres. A projeção cartográfica de Mercator, elaborada no século XVI e ainda considerada a mais emblemática, simbólica e icônica das projeções, vem consolidando uma visão de mundo peculiar no ideário do senso comum através dos séculos. A título de definição, as projeções cartográficas são entendidas como formas ou técnicas de se representar a superfície terrestre esférica de três dimensões (3D) em mapas planificados de duas dimensões (2D). Vale ressaltar, contudo, que toda e qualquer projeção traz consigo uma série de deformações ou um conjunto de ‘mentiras geográficas’.
Atrelada à projeção e gravação da percepção do ambiente adjacente nas superfícies rochosas das cavernas, surge a noção de escala de redução. Intrínseco a toda forma de representação espacial, e que jamais pode ser negligenciada, a escala de representação em Cartografia diz respeito às correlações existentes entre as dimensões gráficas (do modelo ou mapa) e as dimensões naturais (do objeto real). Isto posto, deve-se pontuar que aquele que elabora um documento cartográfico encontra-se inteiramente submetido a um sistema de proporções, ou seja, a uma redução invariável do mundo vivido – em uma certa quantidade de vezes – para que a realidade investigada seja reproduzida numa folha de papel ou qualquer outra superfície de projeção.
Outro elemento essencial pertinente ao campo do conhecimento cartográfico refere-se à adoção de um sistema de coordenadas por parte daquele que produz um mapa. Um objeto presente no mundo vivido palpável, ao ser capturado e esquematizado através das técnicas do desenho cartográfico, deve ser vinculado a uma rede de referências, cujo propósito gira em torno da localização precisa do tal elemento, bem como no que concerne à delimitação de suas dimensões físicas.
Os múltiplos itens da realidade presentes numa fração do espaço, quando submetidos ao processo de modelagem ambiental (processo de mapeamento), passam invariavelmente por uma série de seleções subjetivas. O map maker simplifica o mundo real na tentativa de torná-lo imaginável e compreensível para um conjunto de pessoas que provavelmente encontra-se afastado daquela dada realidade. Vale salientar que o sujeito que faz a leitura de um determinado mapa, simplesmente se apropria de uma imagem de mundo fixa, congelada e pré-estabelecida por um cartógrafo específico (indivíduo com as suas singularidades, imerso em crenças, preconceitos, história de vida, etc.), deslocando-se excessivamente da apreciação do verdadeiro real.
Portanto, cada mapa possui a sua própria história, bem como expressa uma narrativa singular, assim como oculta seus próprios segredos. O mapa possui uma aura de confiabilidade que devemos sempre desconfiar, além de apresenta-se tal qual um mensageiro de verdades ordenadas e objetivas que devemos também sempre duvidar. Entretanto, mergulhemos sob sua superfície e uma história muito diferente emergirá. Mapas fascinam, provocam, perturbam, debocham e, sobretudo, revelam as sinceridades mais profundas não apenas de onde viemos – mas sobre quem realmente somos.
- Referências
HARLEY, J. B.; WOODWARD, D. (org.). The history of cartography: cartography in Prehistoric, Ancient and Medieval Europe and the Mediterranean. Vol. 1. Chicago: University of Chicago Press, 1987.
THE BEAUTY OF MAPS. Direção de Steven Clarke. United Kingdom: BBC, 2010. (4 episódios).
- Sobre o autor
Gustavo é Professor do Departamento de Geografia do Instituto Multidisciplinar da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.