A atitude de “negar” a ciência sempre acompanhou a história dessa forma de conhecimento. Mas, primeiramente, é preciso ter claro qual o propósito geral da prática científica, a fim de entendermos melhor por que certos grupos (uma vez o ignorando) apresentam-se intolerantes aos seus produtos epistêmicos.
A ciência é um tipo muito particular de conhecimento por ser: aproximativo (apenas modela os fenômenos), provisório (é corrigido com o tempo) e pragmático (tende a ser útil ao saneamento de problemas práticos). Diante disso, como o imaginário popular em torno da ciência caricaturiza suas virtudes (ela seria “infalível” e, por essa razão, teria até um ar meio “arrogante”), acaba sendo natural que muitas expectativas se vejam frustradas quando ela (1) não responde tão prontamente às nossas demandas ou (2) quando ela apresenta dados que contradizem nossas convicções pessoais.
Esse panorama é importante, pois, em grande medida, a manifestação de movimentos negacionistas tem bastante a ver com o segundo tipo de reação; ou seja: a ciência é negada porque põe em xeque ideários em torno dos quais se reúnem, passionalmente, grupos que veem ameaçada sua visão de mundo – ideários, em geral, “extremos” (por exemplo, o de que a vontade do indivíduo deve primar sobre qualquer plano coletivo). Quanto àquele primeiro tipo de reação, em tese, ele é menos grave e pode ser reparado dentro de um projeto de educação científica com alguma carga teórica. Em outras palavras: uma boa formação sobre natureza da ciência instruiria, adequadamente, estudantes e professores. E, como resultado, teríamos cidadãos informados de que a prática científica prevê mesmo percalços e obstáculos. Mas o segundo caso é mais complicado porque, por conceito, as negações “obsessivas” são as que não estão dispostas ao contraditório – justo um tipo de postura que contrasta com os cânones de racionalidade objetiva: afirmações baseadas em evidência e abertura à refutação. (Lembrando, aliás, que dúvida e ceticismo são posturas inerentes ao “espírito crítico” que é peça-chave na dinâmica evolutiva da ciência; então, não se quer “proibir” o questionamento da ciência … como alegam, de modo oportunista, alguns grupos negacionistas).
O grau de difusão, por exemplo, das teorias conspiratórias (“instituições poderosas não querem que saibamos a verdade…”) sempre dependerá da existência, circunstancial, de canais que favoreçam o encontro de adesistas a elas. Por isso é que, contemporaneamente, dado o grande protagonismo das redes sociais, os grupos constituídos em função de algum ideário partilhado conseguem congregar um expressivo contingente de membros. Embora não se possa afirmar que esses grupos sejam homogêneos, é razoável supor que muitos de seus integrantes sejam preocupantemente vulneráveis a discursos retóricos e de baixo teor argumentativo.
Uma vez que a sociedade brasileira ainda não conta com uma cultura científica robusta e bem disseminada – isto é, persiste junto ao grande público a ideia de que a ciência é um assunto técnico de exclusividade de seus profissionais –, o negacionismo tem sempre boas chances de recrutar em meio a essa população (na média, muito mal informada sobre a natureza da ciência) um contingente expressivo de pessoas que suspeitem de suas “reais intenções”. Um tipo de consequência nefasta é quando o ideário do pequeno grupo extravasa para a dimensão das atitudes práticas – gerando efeitos no seio da coletividade maior. Isso, de certa maneira, envolve ciências híbridas como a Geografia, porque questões ligadas à saúde e ao meio ambiente, por exemplo, têm sido alvo de contestação.
Relatórios embasados por instrumentos técnicos puderam revelar, há poucos anos, o avanço das queimadas na Amazônia. Ainda assim, houve quem quisesse negar o fato com a retórica de que a instituição científica divulgadora do dado estaria “ideologicamente comprometida”. Esse é um gênero de negacionismo de escala nacional que guarda correspondência com o popular questionamento sobre se estariam mesmo ocorrendo mudanças climáticas em escala global e se os fatores seriam antropogênicos. A sociedade precisa saber lidar mais estrategicamente com essas situações, pois se não há consciência e engajamento diante de problemas que afetam a todos, o grupo pode sofrer com a intransigência de uma minoria – sobretudo quando o problema em questão tem grande poder de difusividade. E vivemos isso na carne com a pandemia de Covid.
A ciência tem o predicado de acumular um grande número de conjecturas, aplicações, casos paradigmáticos e também insucessos. Tudo isso define um portentoso acervo de ideias e experiências que sempre é consultado quando problemas novos surgem. Como temos já muitos séculos de história científica, hoje em dia a resposta aos problemas não tarda a ser desenhada. O drama da pandemia ilustra bem isso. Porque foi em tempo recorde que as primeiras vacinas chegaram ao público. E, mesmo assim, não deixaram de se manifestar os movimentos antivacina.
Quanto à Geografia, em especial, volto a destacar sua condição de campo disciplinar de fronteira. Eu penso que uma ciência tipicamente socioambiental, como ela é, deveria ter a iniciativa de se apresentar com mais frequência na arena das discussões. Isto é, demonstrar que tem instrumentos e conceitos úteis para comunicar informação precisa e confiável sobre as relações econômico-ecológicas. Pessoalmente, vejo o geógrafo como um comunicador científico habilitado a instruir a população quanto aos aspectos regionais do uso de recursos. É claro que isso passa também por um desejo do próprio estudioso da Geografia em assumir compromisso ético e lógico com os critérios da cientificidade (principalmente, o de assentar suas alegações em sólido corpo de evidências). Sem isso, poderemos ter colegas de disciplina com potencial de serem fornecedores de conteúdo aos imaginários complotistas e conspiratórios. Os perigosos componentes do negacionismo.
- Leituras sugeridas
PASTERNAK, N.; ORSI, C. Contra a realidade: a negação da ciência, suas causas e consequências. Campinas: Papirus, 2021.
SOUSA FILHO, A. de. “A terra é plana”: o obscurantismo cínico dos negacionistas. Inter-Legere. v. 3, n. 29, p. 1-30, 2020.
SILVA, M.; REIS JR, D. Ciência, obscurantismo e o papel potencial da Geografia em comunicação científica. Revista de Geografia. Juiz de Fora, V. 12, n. 1, p. 88-116, 2022.
- Sobre o autor
Dante é Professor do Departamento de Geografia da Universidade de Brasília.