A presença de multinacionais em praticamente todo o mundo é um fato consolidado. Seja no que comemos, bebemos, vestimos, nos medicamos, nos locomovemos, nos entretemos e nos comunicamos, no nome daquele estádio de futebol, na conta de luz (de alguns), entre outros, lá estão elas, acompanhadas de expectativas relacionadas à geração de emprego e renda, desenvolvimento econômico e social, modernização, universalização de serviços, inserção no mercado global e uma série de outros supostos benefícios.
Desde o final do século XIX, mas com maior frequência a partir da metade do século XX, estes agentes passaram a fazer parte do cotidiano de diversas pessoas e, de formas variadas, expandiram ainda mais suas ações mundo afora graças ao desenvolvimento dos meios de transporte e comunicação, à globalização neoliberal e a queda de regulamentações nacionais que as impediam de atuarem à vontade e explorarem recursos econômicos, humanos e naturais em diferentes países. Ao longo de todo esse período, as empresas passaram por profundas mudanças internas (organização da produção, gestão dos negócios etc.), aperfeiçoaram (em proveito próprio) suas formas de relacionamento com os países, e se transformaram em agentes fundamentais para a constituição de uma economia global.
Como a sua própria denominação sugere, tratam-se de empresas atuantes em diversas partes do mundo, mesmo que mantenham suas sedes nos seus países de origem. Em seu processo de internacionalização, atuam de forma seletiva, ou seja, escolhem os lugares que podem propiciar mais lucros, se aproveitando das diferenças e desigualdades existentes entre países. A maior ou menor disponibilidade de recursos naturais, a magnitude dos mercados consumidores, a rigidez ou fragilidades das legislações ambientais e trabalhistas, a disponibilidade e eficiência das infraestruturas já existentes, a prontidão dos Estados nacionais em atender suas demandas, são apenas alguns fatores que explicam a escolha que realizam dos países que sediarão suas atividades e serão alvo de suas estratégias de produção e exploração de mercados. Por outro lado, para os lugares que recebem estes agentes, não raramente eles passam a vê-los como o principal caminho para se modernizarem e se desenvolverem rapidamente.
Esta prontidão dos Estados nacionais para recebê-las acaba por promover um processo de corporatização de territórios, marcado por uma destinação de recursos públicos – orçamento e bens patrimoniais – para uso privilegiado de multinacionais ou grandes empresas nacionais, muitas vezes em detrimento da sociedade. Associado a isso, tem-se, por parte do poder público, a criação de normas, leis e decretos que reduzem os custos (por meio de isenções totais ou parciais de impostos e taxas) de operações e circulação de mercadorias, dinheiro ou de transações financeiras realizados pelas corporações.
Ao mesmo tempo em que o poder público cria estratégias para atrair estes agentes – através da disponibilização de recursos territoriais como isenção de impostos, doação de terrenos e outras infraestruturas – as empresas apresentam demandas sobre mudanças de normas e formas que otimizem suas ações no lugar. O atendimento de tais demandas contribui para o aprofundamento do uso corporativo do território.
No Brasil, ambos os casos levaram, desde o final do século XX, à intensificação de disputas entre estados e municípios para ver quem oferece melhores condições e, assim, consegue atrair grandes empresas para seus territórios. Amplamente conhecidas como guerra fiscal, essas disputas também envolvem, não raramente, cessão de uso de áreas públicas, doação de terras, construção de trechos de rodovias etc., nos permitindo falar em uma guerra dos lugares, na qual a escolha das empresas considera um conjunto de circunstâncias vantajosas, e não somente as questões fiscais.
Apesar de não ouvirmos mais falar, com tanta frequência no noticiário, sobre tais disputas, elas ainda ocorrem (em menor intensidade do que em períodos passados) e muitas áreas industriais atualmente consolidadas, foram formadas após estados e municípios entrarem em disputas para abrigar grandes empresas, concedendo incentivos fiscais, financeiros e territoriais (que podem se somar a outras variáveis como proximidade a amplos mercados consumidores, a portos, ferrovias, etc.), que os fizeram vencer as disputas pela atração de determinadas empresas. Assim, realiza-se nesse processo o aprofundamento de uma forma de produção e organização do território que, cada vez mais, ocorre para servir e atender aos propósitos das corporações.
Ainda que se torne aceitável aos olhos da população, uma vez que é apresentado como a única forma de melhorar os índices econômicos e sociais do município, dos estados e do país, a implantação de grandes empresas nacionais e multinacionais em determinados territórios, não raramente, entra “em choque” com interesses de populações locais, que, além de verem seu modo de vida ser alterado, muitas vezes de forma drástica, também veem suas demandas específicas serem colocadas em segundo plano.
Para além dos impactos causados na vida da população, que não são apenas na geração de emprego e renda, a relação estabelecida entre o poder público e as empresas pode ser problemática. Os primeiros devem conceder e atender cada vez mais às “necessidades” de agentes externos que não têm fidelidade ao lugar, podendo mudar de localização se as condições deixarem de lhes ser vantajosas. Em outras palavras, os lugares têm que intensificar as condições que os fizeram atrair grandes empreendimentos e serem vantajosos à maior produtividade e lucratividade das empresas, em uma situação que poderíamos chamar de “extorsão contínua dos lugares” e de aprofundamento do uso corporativo do território, o que compromete recursos públicos que poderiam ter outros usos, mais alinhados às demandas da sociedade, sobretudo em um país tão desigual como o Brasil.
Além disso, e não menos importante, neste uso prioritário que as grandes empresas fazem do território e de sua influência na reorganização do espaço, há uma série de questões relacionadas à adaptação a interesses externos aos lugares, conflitos pelo uso do território, em muitos casos, ônus ambiental deixado para a sociedade, processos de reforço de diferenças e disparidades regionais, com partes do território sendo mais valorizadas do que outras. Sendo assim, evidencia-se a importância de realização e intensificação de estudos sobre o tema, buscando sempre ampliar o debate público de forma crítica, deixando claro que por trás da presença de multinacionais em nosso cotidiano, há inúmeras questões, econômicas, políticas, sociais e ambientais que, direta ou indiretamente, afetam a todos nós.
- Leituras sugeridas
ALVES, Raquel M; TOLEDO, Márcio T. Densidades técnicas e normativas e o fortalecimento do uso corporativo do território no sul fluminense. Boletim Alfenense de Geografia, v. 3, n. 6, p. 58–79, 2023. DOI: 10.29327/243949.3.6-5. Acesso em: 1 maio. 2024.
IBAÑEZ, Pablo. Território e Guerra fiscal: A perversidade dos incentivos territoriais. 2006.174f. Dissertação (Mestrado em Geografia Humana) – Universidade de São Paulo (USP), São Paulo/SP. 2006.
Para ouvir: Podcast do Joio e O Trigo, Prato Cheio, episódio especial intitulado “A Cidades das Marcas” (18 de abril de 2023). Disponível no site de “O Joio e O Trigo”, no Youtube e nas principais plataformas de áudio.
- Sobre os autores
Raquel é mestre em Geografia pela Universidade Federal de São João del-Rei, e Márcio é professor do Departamento de Geociências da Universidade Federal de São João del-Rei.