Quando olhamos para o céu e vemos as nuvens se formando, a chuva que se aproxima parece ser a mesma para todos. Ela não escolhe onde cair, quem molhar ou quem beneficiar. No alto, no processo natural de sua formação, a chuva é, de fato, “democrática”. Mas essa igualdade termina no exato momento em que as gotas tocam o chão. É aí que começam a aparecer, de forma muito clara, as marcas das desigualdades sociais e espaciais.
Esse tema, que pode parecer distante ou abstrato, está muito mais perto do nosso dia a dia do que imaginamos. Um exemplo bem didático encontra-se no filme Parasita (2019), especialmente na cena em que uma forte chuva gera impactos completamente diferentes para duas famílias. Para a família rica, que mora numa casa ampla, bem estruturada e protegida, a chuva é apenas um refresco, uma “bênção” pois traz alívio depois de dias de calor. Enquanto isso, para a família pobre, que vive em um subsolo apertado e vulnerável, essa mesma chuva se transforma em pesadelo: a casa é invadida por água suja, eles perdem o pouco que têm e precisam lidar com o caos causado pelo alagamento.
Cenas como a retratada no filme Parasita não estão tão distantes da nossa realidade. Em diversas regiões do Brasil, as chuvas fortes têm revelado um retrato social desigual e o quanto as populações pobres tendem a ser as mais atingidas pelas consequências desses eventos climáticos.
Por exemplo, no ano de 2022, a cidade de Petrópolis, localizada no estado do Rio de Janeiro, enfrentou sua maior tragédia climática. Segundo dados da Defesa Civil de Petrópolis (Beck, 2023), mais de 4.000 mil famílias ficaram desalojadas e 241 óbitos foram registrados após um período de intensas chuvas no município. Muitas dessas mortes ocorreram em decorrência dos deslizamentos de terra no Morro da Oficina, lugar habitado predominantemente por populações de baixa renda.
De forma semelhante, em 2024, as inundações que acometeram grande parte do estado do Rio Grande do Sul deixaram várias cidades debaixo d’água e impressionaram todo o Brasil. Segundo o Observatório das Metrópoles (2024), as áreas mais afetadas pelas enchentes concentravam populações de baixa renda e, especialmente, a população negra. Esses eventos evidenciam um profundo contraste social, pois os mais atingidos são também aqueles que mais necessitam do apoio do poder público e enfrentam maiores dificuldades para depois reestabelecerem sua vida.
Esses episódios têm se tornado cada vez mais frequentes e acontecem em outras regiões e municípios brasileiros, como em Nova Iguaçu, localizado na Baixada Fluminense. Apesar de ser um fenômeno natural, a chuva acaba funcionando como uma espécie de “lupa” que escancara as desigualdades sociais e deixa evidente quem são os mais afetados pelos problemas urbanos e ambientais. E não é preciso muito esforço para perceber isso.
Dados da estação meteorológica da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), localizada no Colégio Estadual Mestre Hiram, no centro de Nova Iguaçu, mostram como as chuvas intensas fazem parte da rotina da cidade. Só em dezembro de 2024, por exemplo, foram registrados 148 mm de chuva em um intervalo de 4 horas, volume suficiente para gerar alagamentos, deslizamentos e uma série de problemas urbanos. Nesse mesmo dia, a Defesa Civil precisou emitir alertas, elevando o nível de risco, justamente porque eventos como esse aumentam a possibilidade de desastres ambientais.
O problema é que os impactos dessa chuva não são sentidos da mesma maneira por todos. Isso acontece por vários fatores, como o relevo, o tipo de ocupação do solo e, principalmente, a forma como a cidade se organizou ao longo do tempo. A área central de Nova Iguaçu, por exemplo, tem uma baixa declividade, ou seja, é mais plana. Isso, somado à urbanização desordenada e à impermeabilização do solo, impede a água de ser absorvida, fazendo com que o risco de alagamentos e enchentes seja maior.
De maneira geral, a urbanização brasileira é marcada por processos históricos de segregação socioespacial. É comum as pessoas de maior poder aquisitivo residirem nas áreas mais valorizadas das cidades, isto é, dotadas de toda sorte de infraestruturas, amenidades (como parques e áreas arborizadas) e menos suscetíveis a problemas ambientais, como enchentes e deslizamentos de terras. Já as populações mais pobres foram “empurradas”, ao longo do tempo, para áreas mais distantes e precárias, desprovidas de infraestruturas urbanas e, consequentemente, mais vulneráveis, muitas vezes às margens de rios, encostas ou fundos de vale. São justamente essas áreas que mais sofrem quando a chuva vem forte.

Além disso, as mudanças climáticas em curso têm agravado ainda mais essa situação. Estudos mostram que eventos extremos, como chuvas intensas e ondas de calor, estão se tornando cada vez mais frequentes e severas. E quem sente com mais força esses impactos? As populações que já vivem em situação de vulnerabilidade socioespacial. Trata-se daquele velho ciclo nada virtuoso: quem tem menos recursos e mora em locais mais precários, têm menos acesso à infraestrutura, saneamento e proteção, e por isso sofre mais.
O aumento das temperaturas, as alterações nos padrões de precipitação e a maior frequência de eventos naturais extremos não são mais previsões de um futuro distante; são agora uma realidade. E o mais preocupante é que, apesar de todas essas evidências, as políticas públicas ainda caminham de forma lenta e, muitas vezes, são ineficientes para lidar com esses desafios. As Prefeituras Municipais, que deveriam estar na linha de frente desse debate, ainda não incorporam de forma consistente a questão climática nas suas estratégias de planejamento e desenvolvimento urbano.
Diante desse cenário, surgem algumas indagações, como por exemplo: até que ponto a própria pobreza, e os processos de segregação e exclusão social e espacial, não se tornam também um fator de potencialização dos desastres ambientais? Ou ainda, até que ponto a situação de pobreza não torna essa parcela da população ainda mais suscetível aos riscos climáticos e ambientais?
A resposta, infelizmente, aparece toda vez que uma nuvem escura se forma no céu. A chuva, por si só, não escolhe onde cair, mas o chão onde ela toca está longe de ser igual para todos. E, enquanto essa realidade não mudar, continuará sendo assim: a água que refresca uns, afoga e destrói a vida de outros.
- Referências
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Beck, Z. J. V. (2023). Meio ambiente e cidades resilientes: Reflexões sobre o desastre em Petrópolis no ano de 2022. Revista Da EMERJ, 24(2), 202–216. Acesso em: 8 ago. 2025 https://ojs.emerj.com.br/index.php/revistadaemerj/article/view/484
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- Sobre as autoras
Gabrielle e Bianca são alunas do curso de mestrado em Geografia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.