Era um domingo ensolarado de verão mas ao mesmo tempo nebuloso. Fui observar os estragos causados pela combinação de chuvas intensas e ineficiência do poder público na busca de soluções efetivas para o melhor escoamento das águas na bacia de drenagem do rio Botas, entre os municípios de Nova Iguaçu e Belford Roxo, um contribuinte do rio Iguaçu, integrante da Região Hidrográfica da Baía de Guanabara. Presenciei e registrei uma imagem que escancara a realidade: Sr. Assis, um idoso de 86 anos, desobstruindo a Rua Serra com as próprias mãos pra evitar que a sua casa fosse invadida com a próxima chuva intensa.
Preocupada com o tamanho dos matacões, blocos grandes de rochas, que ele tentava deslocar, e correndo muitos riscos de se machucar, fui ajudar a arrancar um tronco grande entre os detritos acumulados. Aproveitei para conversar e perguntar se viu aquela Serra ainda com mata/floresta no passado. Ele, morador da localidade há muitas décadas, me respondeu que sim, indicando onde havia plantação de laranjas e a parte onde ainda havia floresta e, além disso, afirmou que antes as águas da chuva não desciam com a rapidez e o volume de hoje.
Não é preciso ir longe para conhecer a realidade ou buscar soluções. O Maciço Gericinó-Mendanha tem áreas protegidas por legislação Federal, as chamadas Unidades de Conservação (Área de Preservação Ambiental do Mendanha, Parque Estadual do Mendanha, Parque Natural Municipal da Serra do Mendanha e Parque Natural Municipal de Nova Iguaçu) que, com a sua cobertura florestal, têm um papel essencial, entre outras finalidades, de absorver a água da chuva e reduzir a quantidade e a velocidade com que ela chega na parte debaixo, na planície, a mais impermeabilizada da cidade, com asfalto, concreto e todo tipo de superfície que impede a infiltração da água no solo.
O que falta para que projetos de recuperação florestal da Serra de Madureira sejam colocados em prática de forma ampla e efetiva? A recuperação da vegetação poderia trazer muitos benefícios, incluindo a geração de empregos e renda para moradores do entorno. Embora exista um projeto pontual que atua com participação voluntária (“Eles queimam, nós plantamos” – Instituto Educação Ambiental e Ecoturismo), e que mostra no próprio nome o desafio da recuperação da mata diante de ações criminosas constantes, outros projetos precisam ser incentivados e financiados, com ampliação para todas as vertentes, que têm solos já muito degradados, compactados pela citricultura, pastagens e, agora, fragilizados ainda mais por uma expansão urbana que também avança para as suas encostas.
Proprietários ou invasores, além de não recuperarem a área, praticam formas de ocupação e uso do solo que prejudicam a condição das encostas, aumentando a ocorrência de deslizamentos de terra, cada vez mais frequentes, e contribuindo para que a água desça de forma cada vez mais violenta. Se não realocados, eles deveriam ser orientados para mudar as suas práticas, afinal a perpetuação de modos danosos de uso do solo nas encostas tende a agravar os episódios de enchentes, inundações e alagamentos na área urbana, submetendo toda a população a viver sob condições de risco cada vez mais frequentes e com maior gravidade. É evidente que isso não basta como solução para o problema, que é bem conhecido, particularmente na Baixada Fluminense. O abandono do Projeto Iguaçu, por exemplo, é uma realidade que precisa ser lembrada, sendo reconhecido como um projeto que contempla medidas que reduziriam o impacto dessas águas na área já intensamente urbanizada, drenada pelo rio Botas e afluentes.
Também sabemos que a bacia do rio Iguaçu-Sarapuí registra aumento de áreas construídas (urbanização) de 59,5% em 32 anos (1985-2017), o que corresponde aproximadamente ao aumento das áreas impermeáveis (55,6%). As superfícies de mata, solo e até pastagens e campos foram substituídas por asfalto e concreto. E, para piorar, tal processo ocorreu numa bacia hidrográfica que tem 32,24% de áreas com susceptibilidade à inundação (baixa, média e alta), segundo os dados do Serviço Geológico do Brasil. Esse processo de impermeabilização, resultante da expansão de construções, foi mais intenso justamente nas áreas mais susceptíveis, que compreendem 17,43% da área de risco total.
O mapeamento mais recente realizado pelo MAPBIOMAS sobre o ritmo da urbanização brasileira nos mostra que esse não é um problema exclusivo da Baixada Fluminense. No Brasil, entre 1985 e 2022, as áreas urbanizadas triplicaram de tamanho, passando de 1,2 para 3,7 milhões de hectares em 2022, sendo 3% dessa expansão em locais em situações de risco, como as encostas íngremes. Destacam, ainda, o avanço das áreas urbanizadas em terrenos próximos aos rios. Portanto, é necessário agir com urgência diante dessa realidade que nos desafia a cada dia e cobra responsabilidade, principalmente do poder público, que tem os recursos humanos, financeiros e técnicos para serem investidos. E não do Sr. Assis que, com o seu corpo já naturalmente enfraquecido pela idade, buscava desobstruir a rua que havia sido inundada, mostrando a força e a vontade que as autoridades responsáveis pelo ordenamento do território deveriam ter.
SIM, de acordo com os estudos climáticos, sabemos que a tendência é que os eventos chuvosos sejam cada vez mais frequentes e mais intensos, com poder de destruição cada vez maior! Mas, a culpa NÃO é exclusiva “da chuva”, como alguns insistem em afirmar por falta de informação ou quando é oportuno para se desviar de responsabilidades que lhes cabem. Mesmo em dias com volume menor de precipitação, o estrago tem sido enorme e repetitivo na vida de muitos moradores.
A água é fundamental para a nossa existência, sendo responsável por esculpir muitas entre as belas paisagens que admiramos, inclusive a desse imponente maciço, um relevo tão marcante na paisagem da Baixada da Guanabara. Um dia foi muito mais alto (3000 metros de altitude), ocupava uma área muito maior e teve apagado até os vestígios da verdadeira cratera do vulcão que um dia existiu há, aproximadamente, 65 milhões de anos. Essa água continua fazendo esse trabalho eficiente de modificá-lo, só que de forma diferente, agora com influência da ação do Ser Humano no “Antropoceno”, que acelera e intensifica os processos na superfície terrestre. A forma com que lidamos com ela diante dessa realidade é que precisa ser remediada para que não tenhamos que sentir medo ao olhar para um céu anunciando a próxima tempestade.
- Referências de informações e dados citados
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- Sobre a autora
Laura é Professora do Departamento de Geografia do Instituto Multidisciplinar da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.