Antropoceno: o planeta em rota de mudança?

Apesar de canonizado no âmbito das geociências e de outros campos do conhecimento científico, o Antropoceno, enquanto época geológica, não foi aclamado por maioria de votos para compor oficialmente o topo da coluna estratigráfica, acima do Holoceno, permanecendo como unidade informal aos olhos dos critérios bem marcados da Geologia, que procura nuclear um debate que há muito transbordou o escopo puramente geocientífico e passou a permear as mais diferentes áreas do conhecimento.

O Antropoceno não figura meramente como um acumulado de ações humanas sobre o sistema Terra, mas projeta-se como uma emergência, uma franca mudança do estado dinâmico-funcional global vigente durante o Holoceno, determinado pela capacidade humana em alterar processos geológicos e climáticos em macroescala. Admitir o Antropoceno, portanto, implica pensar em evolução, em internalizar a perspectiva hegeliana de transformação qualitativa, transposta no plano material por Marx e Engels pela Lei da Transformação da Quantidade em Qualidade. A transformação qualitativa implica em mudança de estado, uma substituição de processos dinâmicos reversíveis que vigiam no estado anterior por processos dinâmicos, distintos, inerentes ao estado emergente, assumindo assim uma natureza irreversível.

Defender a legitimidade do Antropoceno demanda pensar em irreversibilidade, e carece, portanto, de um substrato argumentativo proficiente o suficiente para embasar tais transformações qualitativas e irreversíveis, quais sejam: incremento de matéria e energia oriundas de atividades humanas acumuláveis em registros estratigráficos globalmente relacionáveis; carbonização da atmosfera com viés de aquecimento climático e progressiva reorganização na circulação geral da atmosfera; modificação na assinatura geoquímica dos solos e das águas pela mudança no ciclo de elementos como fósforo, nitrogênio e urânio devido às práticas monocultoras e de geração de energia; simplificação extensiva de paisagens determinada por práticas econômicas agroexportadoras e substituição progressiva dos biomas originais pelos chamados antromas; perda de funcionalidades ecossistêmicas e efeitos deletérios na biota animal e vegetal, cujo prognóstico é a formação de uma neobiota antropocênica, entre outros efeitos.

A abstração de uma esfera humana envolvendo as esferas naturais que formam o invólucro terrestre remetem ao século dezenove, tendo como referência a obra Man and Nature or physichal geography as modified by human action de Georges P. Marsh (1801-1882), publicada no ano de 1864. Várias proposições sucederam esta importante obra versando ao redor da esfera humana, culminando com a poderosa noção de noosfera e que tem sido creditada ao geólogo e jesuíta francês Pierre Teilhard de Chardin (1881-1955), ao matemático e filósofo francês Édouard Le Roy (1870-1954) e ao geoquímico russo Vladimir Vernadsky (1863-1945). Entre os três cientistas citados, Vernadsky foi quem aproximou a noção de noosfera mais contundentemente às relações sistêmicas que vigem no sistema Terra, contextualizando seu surgimento na medida em que a consciência humana se projeta da biosfera, desde o primeiro despertar ainda no Paleolítico até a culminância da Idade Atômica.

Vernadsky concebeu a noosfera olhando para o futuro a partir de seu tempo, defendendo a aproximação, a partir de meados do século vinte, de um estado regido pelos ritmos e intencionalidades humanas pelo qual a humanidade adquire uma poderosa e inexorável força, enquanto agente transformador de elementos da paisagem que evoluem em longo termo. Indefectivelmente, essa capacidade de transformar variáveis que evoluem no tempo mais profundo foi um critério aventado pelo insigne cientista russo e que tem servido como mote para pensar o Antropoceno na contemporaneidade, incluindo o estabelecimento de sua temporalidade. Nessa linha, os painéis que a comissão estratigráfica internacional propuseram para definir o tempo do Antropoceno convergiram em estabelece-lo a partir do pós-guerra, o chamado período das “Grandes Acelerações”, explícito no aumento exponencial de vários elementos caros para a apreensão de uma mudança de estado: expansão do contingente demográfico humano, perda de biodiversidade, acidificação de águas oceânicas e formação de zonas mortas marinhas, aumento das atividades monoculturas e dos elementos químicos utilizados como fertilizantes, incremento do urânio produzido e armazenado, ampliação dos materiais tecnogênicos nos arquivos sedimentares, aprofundamento da espoliação humana e da distinção entre Norte e Sul global orquestrada pelas lógicas capitalistas, entre outros efeitos.

No atual estado da arte e do debate ao redor do Antropoceno, considera-lo como uma temporalidade válida apenas a partir de um registro estratigráfico, aderindo aos cânones tradicionais da Geologia Sedimentar, francamente simplifica significados mais profundos subjacentes ao Antropoceno. Não resta dúvida, as “Grandes Acelerações” correspondem de forma mais ou menos síncrona às acelerações do próprio sistema capitalista e ao aprofundamento da exploração da sua base material contida na natureza em prol da sua expansão. O tempo do Antropoceno é um tempo de transformações irreversíveis na aludida base material, mas também é um tempo da ampliação das zonas de sacrifício nos países de limitada condição material para suprir déficits de economias centrais por determinados recursos, um tempo no qual as fissuras metabólicas tem se expandido e coalescido, impondo rupturas na atmosfera, na biosfera e na hidrosfera de fio a pavio, convertendo as crises ambientais atuais em situações de franco e irreversível colapso ainda não plenamente consensuais acerca da abrangência dos seus efeitos, mas que colocam cientistas e humanistas em geral em ininterrupta belicosidade contra as denegações que infestam o debate, normalmente propaladas em alinhamento ao interesse das grandes corporações que lucram com a exploração dessa base material.

É preciso, portanto, aceitar o Antropoceno para que o enfrentamento político das bases hegemônicas do capitalismo não sejam inócuas. Sendo os efeitos irreversíveis, novos sistemas de compartilhamento de nichos deverão e estão emergindo e, indubitavelmente, o atual sistema de partilha dos recursos mundiais recrudescerá as condições de vida de grande parte da população mundial. Essa repactuação, certamente, não partirá de governos e seus conluios com os grandes agentes do capital, incapazes de cumprir as cláusulas de tratados e acordos ambientais dos quais são signatários, mas sim de uma ampla mobilização de forças e movimentos contra-hegemônicos capazes de pressionar governos a enfrentarem os grandes conglomerados capitalistas (dos quais muitas vezes são lacaios) e promover a verdadeira emancipação dos grupos humanos e horizontes culturais associados frente às bases naturais que habitam e que perfazem seu espaço vivido e suas relações identitárias.

  • Leituras sugeridas

ANGUS, I. Enfrentando o Antropoceno. São Paulo: Boitempo, 2023. 287p.

MARQUES, L. Capitalismo e colapso ambiental (2° ed.). Campinas: Editora da UNICAMP, 2016. 711p

ZALASIEWICZ, J.; WATERS, C. N.; WILLIANS, M.; SUMMERHAYES, C. P. (Eds.) The Anthropocene as a Geological Time Unit: a guide to the scientific evidence and current debate. Cambridge: Cambridge University Press, 2019.

  • Sobre o autor

Roberto é professor do Departamento de Geociências da Universidade Federal de Juiz de Fora.

Publicações relacionadas