Déficit habitacional: É possível resolvê-lo?

Favela de palafitas no município de Guarujá, litoral do estado de São Paulo, Brasil.

A questão habitacional no Brasil é um desafio complexo e de longa data, com raízes históricas profundas e múltiplos atores envolvidos. Essa problemática, que abrange desde esferas governamentais até movimentos sociais e grupos de interesses privados, tem se mostrado resiliente ao longo do tempo. Um marco significativo em sua intensificação foi a promulgação da Lei de Terras de 1850 (Lei nº 601), que impulsionou a concentração fúndiária, e consolidou o debate sobre o acesso à terra como um dos maiores dilemas espaciais da população brasileira.

Embora a moradia seja amplamente reconhecida como um direito humano universal e, no Brasil, como um direito social garantido pelo Artigo 6º da Constituição Federal de 1988, sua efetivação no país enfrenta um embate direto com a lógica da propriedade privada e a ideologia do “sonho da casa própria” promovida pelo mercado imobiliário. Em grande parte, o acesso à moradia no Brasil tem sido mediado por políticas habitacionais baseadas em financiamento, as quais, não raramente, condicionam o acesso dos indivíduos e famílias à habitação às suas rendas e possibilidades de endividamento a longo prazo.

É crucial entender que a dignidade da moradia vai além da simples aquisição ou financiamento de uma casa. Pesquisas, como a de satisfação com o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) realizada pelo Ministério das Cidades (Brasil, 2014), demonstram que o conceito de moradia digna engloba a integração com o cotidiano, a mobilidade e o acesso a equipamentos e serviços públicos. Não se trata apenas da estrutura física, mas da conexão das residências com o entorno e a qualidade de vida que essa conexão proporciona. Assim, para se realizar uma leitura ampla da questão habitacional, deve-se associar o direito à moradia ao direito à cidade, ou seja, reconhecer que morar adequadamente vincula-se também as possibilidades de acesso à vida urbana (e às suas facilidades) que o local em que a moradia se situa permite.

Favela da Rocinha, Rio de Janeiro, Brasil.

As políticas habitacionais promovidas pelo Governo Federal surgiram como uma resposta social e econômica ao problema do déficit habitacional. Entre pesquisadores e gestores públicos, há um reconhecimento da necessidade de substituir imóveis precários, construir novas moradias, mitigar o ônus excessivo com o aluguel e resolver a coabitação familiar. Esses aspectos são componentes essenciais do cálculo do déficit habitacional, conceito elaborado pela Fundação João Pinheiro e que é utilizado pelo Governo Federal para a formulação de políticas públicas orientadas ao setor.

Em 2009, ano da criação do PMCMV, o déficit habitacional, isto é, o número de habitações que estimava-se ser necessário construir para atender a parcela da população que não dispunha de residência, ou que vivia em condições precárias, era de mais de 5,8 milhões de moradias. Atualmente, esse número permanece em aproximadamente 5,9 milhões, segundo dados da Fundação João Pinheiro (2025). Isso indica que, embora o PMCMV tenha desacelerado o aumento do déficit, com aproximadamente 8,4 milhões de moradias entregues entre 2009 e 2024 (Brasil, 2025), essa política não foi suficiente para sanar o problema estrutural da carência habitacional no Brasil. Para enfrentar essa questão, é imperativo frear a especulação imobiliária, reduzir o número de domicílios vazios (incluindo imóveis de temporada), resolver o problema da concentração de terras e ampliar as alternativas habitacionais para atender os diferentes estratos sociais da população brasileira.

Anos após a massificação do financiamento como principal via de acesso à moradia, o Brasil tem começado a diversificar suas políticas públicas para o setor. Embora o financiamento ainda represente a maior parcela do PMCMV, o Governo Federal tem formulado novas estratégias para alcançar a população excluída do programa devido à baixa renda que apresentam, as dificuldades de acesso ao sistema bancário de financiamento que possuem, e a parca disponibilidade de habitações de cunho social existente.

Em 2023, por exemplo, o Governo Federal lançou uma reserva obrigatória de 3% das unidades habitacionais na modalidade Fundo de Arrendamento Residencial (FAR) para pessoas em situação de rua ou com trajetória de rua. Essa iniciativa, que abrangeu 38 municípios em capitais e regiões metropolitanas brasileiras, é um esforço conjunto dos Ministérios das Cidades, Direitos Humanos e Cidadania, Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome. A proposta vai além da simples entrega da casa, buscando associar o acesso à moradia à promoção de outros direitos básicos para essa população pobre e vulnerável.

Comunidade da Gamboa, Salvador, Bahia, Brasil.

Um exemplo recente (ano de 2024) é a “Parceria Público-Privada (PPP) Morar no Centro”, projeto implantado no Município do Recife/PE, e que conta com a participação do Governo Federal. A iniciativa visa o aluguel social de imóveis mobiliados em áreas centrais, com a assistência de serviços executados pela PPP na instalação, manutenção e operação de empreendimentos para a população de baixa renda e para o mercado popular, englobando gestão condominial, trabalho técnico, social e comunitário para o atendimento dos diferentes tipos de arranjos familiares (Prefeitura do Recife, 2025).

Essa proposta de requalificação de imóveis para locação social, sugerida pelo município, apresenta uma alternativa territorializada para repensar a implementação nacional das políticas públicas em um país de dimensões continentais. A elaboração desse projeto envolve estudos aprofundados, audiências públicas e coordenação entre múltiplos atores, refletindo uma abordagem mais abrangente para o enfrentamento da problemática da moradia.

Por fim, é válido mencionar que o presente texto se dispôs a apresentar brevemente diferentes problemáticas de acesso à moradia, refletir sobre alguns aspectos da atuação do PMCMV no país, evidenciar a capacidade de resposta do Governo Federal ao dilema do déficit e abordar a urgência de se (re)pensar as políticas habitacionais em vista da complexidade social dos arranjos familiares, desigualdades espaciais e de renda da população. Como bem se sabe, justamente por ainda haver “tanta gente sem casa e muita casa sem gente”, o problema do acesso à moradia continua reclamando uma solução adequada, digna, urgente e definitiva em nosso país.

  • Referências bibliográficas

BRASIL. Pesquisa de satisfação dos beneficiários do Programa Minha Casa Minha Vida. Ministério das Cidades/Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Editado por Fernando Garcia de Freitas e Érica Negreiros de Camargo – Brasília, DF: MCIDADES; SNH; SAE-PR; IPEA, 2014. 120 p.

____. Secretaria de Comunicação Social (Secom). Minha Casa, Minha Vida fecha 2024 com 1,26 milhão de unidades contratadas. Disponível em: https://www.gov.br/secom/pt-br/assuntos/noticias/2025/janeiro/mcmv-fecha-2024-com-1-26-milhao-de-unidades-contratadas. Publicado em: 29/01/2025.

FAGNANI, Eduardo. Política habitacional. In. GIOVANNI, Geraldo; NOGUEIRA, Marco (Orgs.). In. Dicionário de políticas públicas. São Paulo: Editora UNESP, 2015.  pp. 756-761.

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MINISTÉRIOS DAS CIDADES. Conheça o Minha Casa, Minha Vida para pessoas em situação de rua. Disponível: <https://www.gov.br/cidades/pt-br/assuntos/noticias-1/noticia-mcid-n-1121>. Acesso: 09 Jun. 2025.

PREFEITURA DO RECIFE. Parceria Pública-Pública (PPP) “Morar no Centro”. Disponível: <parcerias.recife.gov.br>. Acesso: 30 Abr. 2025.

SOUZA, Flávia da Silva. O aprofundamento de desigualdades no espaço do trabalhador a partir do programa “Minha Casa Minha Vida” no município de Nova Iguaçu-RJ. 2019. 145 f. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Instituto de Agronomia/Instituto Multidisciplinar de Nova Iguaçu, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica, RJ, 2019.

  • Sobre a autora

Flávia é graduada e mestra em Geografia pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e doutora em Geografia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

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