No romance “Gabriela”, o protagonismo de uma região

Gabriela, Cravo e Canela. Editora Record, 1958.

A obra “Gabriela, Cravo e Canela” foi escrita pelo romancista baiano Jorge Amado e teve sua publicação no ano de 1958. A narrativa é ambientada na década de 1920 e discorre sobre a vida da população da cidade de Ilhéus, localizada no Sul do estado da Bahia. Seu enredo relata um contexto de disputas pela modernização da cidade, e explora os conflitos entre a tradicional elite regional (cacaicultores) e os grupos sociais emergentes (comerciantes e exportadores de cacau).

Jorge Amado, filho do fazendeiro de cacau João Amado de Faria e de Eulália Leal Amado, nasceu em 10 de agosto de 1912, na fazenda Auricídia, no distrito de Ferradas, localizada no município de Itabuna. Durante seus estudos no Ginásio Ipiranga, em Salvador, começou a trabalhar em jornais e a participar da vida literária, sendo um dos fundadores da Academia dos Rebeldes. Formou-se pela Faculdade Nacional de Direito, no Rio de Janeiro, em 1935. Militante Comunista, foi obrigado a exilar-se na Argentina e Uruguai entre 1941 e 1942, período em que fez longa viagem pela América Latina. Em 1945, foi eleito deputado federal pelo estado de São Paulo e foi autor da lei, ainda hoje em vigor, que assegura o direito à liberdade de culto religioso. Amado faleceu em Salvador, no dia 6 de agosto de 2001.

Em “Gabriela, Cravo e Canela” é possível observar que, através do avanço da produção cacaueira, Ilhéus passa a comandar a economia regional. Isso proporciona uma expansão urbana, o desenvolvimento do comércio e dos meios de transporte, além do interesse, por parte de alguns comerciantes, pela construção do porto de Ilhéus, com o objetivo de dinamizar a exportação do cacau. A obra aborda as mudanças no contexto social e econômico de uma região que, ao longo do tempo, passou a ser conhecida, popularmente, como a “terra do cacau”.

O enredo é, particularmente, centrado no período entre as safras de 1925 e 1926. O autor explica que se tratou de um ano marcado por acontecimentos decisivos na vida da região, como, por exemplo, o “caso da barra”, a luta política entre o exportador de cacau, Mundinho Falcão, e o velho cacique local, coronel Ramiro Bastos, além do julgamento do coronel Jesuíno Mendonça e a chegada do primeiro navio estrangeiro ao porto de Ilhéus, iniciando, assim, a exportação direta do cacau.

A importância do cacau para o funcionamento de Ilhéus fica explícita durante toda o texto. Amado inicia a narrativa descrevendo a prosperidade local, resultante da circulação do dinheiro proveniente da produção cacaueira. Em suas palavras: “A cultura do cacau dominava todo o sul do estado da Bahia, não havia lavoura mais lucrativa, as fortunas cresciam, crescia Ilhéus, capital do cacau” (AMADO, 2012, p. 20).

Fonte: Fundação Casa de Jorge Amado.

Rita Santos (2017)  explica que a região cacaueira pode ser pensada tanto em sua materialidade, isto é, através de sua construção histórica, como, também, a partir do seu simbolismo, ou seja, por meio das imagens e representações construídas sobre ela. Daí poder-se falar na região como sendo um verdadeiro artefato (HAESBAERT, 2010), dado o Sul baiano poder ser compreendido como uma realidade concreta e, ao mesmo tempo, inserir-se no campo simbólico, mítico, a partir dos significados e sentidos a ela atribuídos. 

Sabemos que o conceito de região possui diferentes concepções, vindo a dificultar o estabelecimento de um sentido único para o termo. Entretanto, ainda que a palavra região possa ser empregada na representação de diversos fenômenos – desde a localização de um grupo social com um modo de vida próprio, até a identificação de um ambiente natural dotado de aspectos físicos únicos – existe um relativo consenso de que o termo “região” refere-se, quase sempre, à existência de uma porção do espaço (seja ele global, nacional ou local) dotada de características sociais, econômicas, políticas ou naturais únicas, distintas das demais (HAESBAERT, 2010).

Diante disso, pode-se afirmar que, na obra em tela, Jorge Amado descreve a região, seus habitantes e tradições de modo a revelar as características e a identidade do Sul baiano, alçando Ilhéus e seu entorno à condição de “personagens” centrais do romance. Narra-se a riqueza produzida pela economia cacaueira, seu impulso ao desenvolvimento da região, o progresso urbano de Ilhéus, mas, também, a violência, os conflitos e as lutas pelo poder local erigidas em meio à constituição de uma “civilização do cacau” (FUSER, 2021).

Vale ressaltar que, por ser considerada ficção, a literatura demorou um certo tempo para ser reconhecida pela ciência como um campo relevante de estudos. Contudo, cada vez mais, a Geografia tem dirigido atenção para a Literatura por sua visão sobre as regiões, paisagens e lugares, importantes conceitos para essa disciplina. Cabe salientar que a própria obra literária é resultado de processos geográficos, sociais, históricos, políticos, econômicos e culturais. Por isso, faz-se pertinente para a ciência se valer da interdisciplinaridade e de outras formas de linguagem e conhecimento para a obtenção de uma compreensão mais ampla, lúdica e crítica da realidade.

A Literatura do sul baiano, também conhecida como Literatura Grapiúna, pode ser considerada um documento que expressa simbolicamente uma realidade social e uma época, pois articula ficção e contexto histórico em seus textos. Essa Literatura evidencia práticas sociais consideradas particulares, e tem como objetivo revelar a coesão política, econômica e cultural que contribuiu para a construção e existência de uma “civilização do cacau”. Seus textos são fundamentais para a compreensão do olhar que se teve e ainda se tem sobre o Sul baiano, bem como foi essencial para a formação da imagem que a sociedade cacaueira fez de si mesma. Ainda, tornou-se importante propaganda dessa região, tendo contribuído para a construção de uma imagem mística que, ainda hoje permeia o imaginário popular (brasileiro e mundial) sobre o Sul baiano. 

Ademais, deve-se destacar que a aproximação entre Ciência e Literatura, através da análise de obras literárias, contribui para o enriquecimento e a melhor compreensão de temas, conceitos e problemas abordados sistematicamente pela Geografia e disciplinas afins. Ao constituir-se em um texto que, frequentemente, apresenta uma linguagem simples, acessível a um público maior, as obras literárias podem ser vistas como fontes de informação, no mínimo, muito agradáveis aos leitores. Por apresentar tal característica e, por vezes, cativar o leitor através das tramas e enredos ficcionais, esses textos acabam então constituindo-se em um instrumento valioso para a imersão em realidades e problemas que, não raramente, apresentam-se como sendo de difícil alcance para muitas pessoas, mas cuja a obra ficcional, a seu modo, trata de aproxima-los dos leitores.

  • Referências

AMADO, Jorge. Gabriela, Cravo e Canela: crônica de uma cidade do interior. 2° ed. São Paulo: Companhia das Letras,2012.

ARAÚJO, Bruna E.F.de A. Região e Regionalismo na obra “Gabriela, Cravo e Canela” de Jorge Amado. 2022. Monografia (Licenciatura Plena em Geografia) – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – Instituto Multidisciplinar (UFRRJ- IM), Nova Iguaçu/RJ, 2022.

FUSER, Lucivânia Nascimento dos Santos. Marxismo e nacionalismo na obra de Jorge Amado sobre a região cacaueira. Revista Espaço Acadêmico, Paraná, n.229, p. 198-209, jul./ago.2021.

HAESBAERT, Rogério. Regional-global: Dilemas da Região e Regionalização na Geografia contemporânea. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.

SANTOS, Rita de Cássia Evangelista dos. A região cacaueira da Bahia em Jorge Amado: memória, imaginação e identidade pelo prisma da geoliteratura. Dissertação (Mestrado em Geografia)-Universidade Federal de Goiás. Goiânia, p.158.2017.

ROCHA, Lurdes Bertol. A Região Cacaueira da Bahia: uma abordagem fenomenológica. 2006. 290 p. Tese (Doutorado em geografia) – Universidade Federal de Sergipe, Aracaju, 2006.

  • Sobre a autora

Bruna é graduada em Geografia pelo Instituto Multidisciplinar da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

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